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21 de abril de 2025

Além do Controle Parental: O Verdadeiro Desafio da Educação Digital

Cristiane Geminiano (*)

A  minissérie Adolescência, na Netflix, e a liberação da  versão do Instagram para adolescentes  impulsionam um debate urgente: os impactos do uso excessivo de telas por crianças e adolescentes .

O controle parental e as novas ferramentas de monitoramento são importantes, mas tratam apenas da superfície do problema. O verdadeiro desafio da educação digital vai muito além disso — envolve questões estruturais, sociais, econômicas, educacionais e culturais que moldam o comportamento das famílias e da juventude.

A falsa sensação de escolha

O discurso mais comum responsabiliza os pais pela supervisão e escolhas digitais dos filhos. Mas, será que essas famílias realmente têm escolha?

O problema é generalizado, mas se agrava em contextos de vulnerabilidade social. Em muitos lares brasileiros, a realidade é dura: a tecnologia não é para apenas uma distração — é, muitas vezes, a única alternativa possível diante da exaustão cotidiana, da sobrecarga de trabalho e da ausência de políticas públicas de apoio. Quando esses lares são chefiados por mães solo e famílias desagregadas, a situação se intensifica. A presença do pai, ainda que nem sempre efetiva, supõe algum nível de divisão de tarefas. Sem essa figura, a responsabilidade recai inteiramente sobre as mulheres.

E o cenário pode ser ainda mais delicado em famílias onde os avós assumem a criação dos netos. Além das limitações financeiras e da ausência de uma rede de apoio, há ainda a falta de letramento digital. Muitos desses avós sequer compreendem os riscos da internet ou as dinâmicas de consumo digital que envolvem as novas gerações. Assim, fica ainda mais difícil exercer qualquer tipo de supervisão parental eficaz.

A maioria dos pais e cuidadores também não foi educada para exercer esse papel. Eles próprios estão aprendendo a lidar com a vida digital e, muitas vezes, sem tempo, apoio ou acesso à informação qualificada.

Segundo o IBGE, 63,3% das mães solo ocupam uma posição no mercado de trabalho. No entanto, isso não significa empregos com direitos garantidos, estabilidade ou jornada flexível. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que 54% das mães atuam sem registro formal. Já a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal revela que 72% relatam dificuldades em acessar creches ou serviços de apoio à infância.

O resultado é um cenário em que o tempo diante das telas se torna, para muitas famílias, na única alternativa segura e viável para ocupação das crianças sem acesso a atividades extracurriculares, espaços de convivência ou com a presença constante de um cuidador.

A infância sequestrada pela urbanização e pelo medo

Houve um tempo em que a rua e os campinhos eram os principais espaços de socialização infantil e juvenil. Brincar com os vizinhos, andar de bicicleta, inventar jogos — tudo isso acontecia de forma orgânica, ao ar livre. Hoje, esse cenário quase desapareceu nos grandes centros. Somente nas periferias e pequenas cidades isso ainda acontece com alguma frequência.

A violência urbana, a escassez de áreas públicas seguras e o isolamento nos condomínios transformaram a infância em algo cada vez mais solitário e digital. Poucos prédios têm playgrounds funcionais. A ideia de “ir brincar na casa do amiguinho” tornou-se rara. E a escola, muitas vezes, é o único espaço de interação — e ainda assim, limitada.

Essa mudança no tecido social também alterou as dinâmicas familiares. O pouco tempo livre que havia foi substituído por jornadas duplas ou triplas de trabalho, principalmente entre pais empreendedores ou informais — e, sobretudo, entre mães solo, que acumulam sozinhas as tarefas do lar e do cuidado. Nessa equação, sobra pouco espaço para brincar com os filhos, ler um livro juntos ou até mesmo conversar com calma.

A tecnologia como aliada e vilã

É injusto demonizar a tecnologia quando ela se tornou uma ferramenta de sobrevivência para tantas famílias. O celular, o tablet e a televisão ocupam o papel de “babás digitais” — não por negligência, mas por necessidade. Eles permitem que mães e pais participem de reuniões, atendam clientes ou simplesmente consigam descansar por alguns minutos.

O problema é que o ambiente digital captura a atenção indefinidamente. Diferente da TV aberta tradicional, com sua programação fixa, os conteúdos online são infinitos, personalizados e disponíveis o tempo todo. Segundo a pesquisa mais recente do Panorama Mobile Time/Opinion Box – Crianças e adolescentes com smartphones no Brasil – Outubro de 2024, adolescentes entre 13 e 16 anos passam, em média, 3 horas e 42 minutos por dia no smartphone. Entre 10 e 12 anos, são 2 horas e 42 minutos diárias. Até mesmo crianças de 0 a 3 anos já somam, em média, 1 hora e 27 minutos por dia diante das telas.

O impacto vai além da quantidade de tempo: envolve saúde mental, qualidade do sono, autoestima e socialização. E há um agravante — o acesso desigual à educação emocional e digital. Enquanto algumas famílias conseguem orientar seus filhos sobre os riscos da internet e ensinar os limites saudáveis, outras não têm sequer tempo ou conhecimento para isso. O resultado? Cyberbullying, vício digital e transtornos emocionais se tornam cada vez mais comuns entre jovens.

Uma sociedade que cobra, mas não apoia

Vivemos um paradoxo cruel: a sociedade cobra das mães que sejam trabalhadoras exemplares e, ao mesmo tempo, cuidadoras incansáveis. Porém, quando uma mulher tem filhos pequenos, o mercado de trabalho frequentemente a exclui, desvalorizando sua produtividade e questionando seu comprometimento. E o Estado falha na falta de políticas públicas adequadas para dar conta desse dilema.

As famílias mais afetadas por essa negligência são justamente aquelas que não têm acesso a lazer, educação extracurricular ou suporte familiar. Quando a única opção de entretenimento é gratuita, está disponível 24 horas e não exige deslocamento, a resposta se torna óbvia: as crianças vão para as telas.

Caminhos possíveis para um futuro mais justo

Resolver essa questão exige uma mudança de perspectiva. Não basta focar apenas no monitoramento digital ou na criação de novos aplicativos. É preciso atacar as raízes do problema. Algumas ações urgentes incluem:

  1. Ampliação de políticas públicas
    Mais creches, espaços públicos de lazer, apoio a mães solo e subsídios para atividades extracurriculares em regiões periféricas.
  2. Redução da jornada de trabalho
    Empresas e governos precisam criar condições para que mães e pais possam conciliar trabalho e cuidado familiar. Os sindicatos — que representam os trabalhadores — também devem se engajar ativamente nessa luta. É um problema coletivo, e não apenas das famílias.
  3. Educação emocional e digital nas escolas
    As crianças precisam aprender a lidar com a ansiedade, frustrações e os desafios da era digital. E os pais devem ser incluídos nesse processo, com apoio psicológico e programas de capacitação.
  4. Mudança na cultura do trabalho
    Precisamos romper com o mito da produtividade sem limites. Uma sociedade mais saudável é aquela que valoriza o tempo em família e reconhece o trabalho do cuidado como essencial. Afinal, as tecnologias estão aí para reduzir a carga de trabalho, e não o contrário

Enquanto essas medidas estruturais não forem implementadas, o debate sobre o uso excessivo de telas continuará raso e injusto. Culpar as famílias — especialmente as mães solo — por um problema que é coletivo, sistêmico e multifatorial é, no mínimo, covarde.

O mundo digital não é o vilão. Mas a omissão da sociedade frente à desigualdade e à sobrecarga familiar certamente é.

(*) Editora da FonteMidia Digital.