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São Paulo
29 de julho de 2025

O Paraíso Cibernético e o Inferno Sem Lei

<p>De fato, há entre as duas expressões uma similaridade clara. Vejamos o que motiva a existência de uma e de outra. O que leva uma nação a se tornar um paraíso fiscal é o interesse em atrair para si uma parte do capital global através de dois atrativos básicos: o primeiro é a oferta de uma depreciação de taxas governamentais sobre o capital, algo que os técnicos financeiros classificam como “dumping tributário”. O outro atrativo fatal é o sigilo total que esses refúgios oferecem quanto ao proprietário dos valores ali depositados, incluindo-se aí a possibilidade de criar empresas offshore praticamente anônimas em sua composição.<br /><br />A motivação para que um País decida se posicionar como um paraíso cibernético pode envolver complexas questões de ordem econômica e geopolítica, mas uma das principais é, sem dúvida, o interesse estratégico em transformar seu território em polo privilegiado para a instalação de data centers, fábricas de softwares, empresas globais de e-commerce e todo o tipo de investimentos da economia web. <br /><br />Tal como o paraíso fiscal, o paraíso cibernético oferece ao operador de negócios digitais uma excelente trincheira para se defender contra as legislações “incômodas”. Enquanto o refúgio fiscal provê o chamado dumping tributário, o paraíso cibernético oferece um verdadeiro apagão legal, livrando os proprietários de sites e negócios do mundo digital de terem de se curvar diante de restrições, muitas vezes, consideradas maléficas aos negócios. A outra oferta irresistível, no âmbito do refúgio digital, é o ponto extremo desse referido apagão: trata-se do anonimato garantido para ações praticadas na web, o que reforça as salvaguardas antijudiciais que estão no espírito da coisa.<br /><br />Descritas dessa maneira, essas duas visões do paraíso (a fiscal e a cibernética), já chegam a suscitar sérias dúvidas sobre as janelas de oportunidade que ambas abrem para o crime ou para práticas desleais nos negócios.<br /><br />Para uma e para outra, porém, há também argumentos favoráveis que, no caso dos paraísos fiscais estão frequentemente associados à liberdade individual, ao “sagrado” direito de autoproteção da propriedade e da privacidade financeira, bem como ao direito “legítimo” que o capital privado tem de se proteger diante da voracidade tributária do Estado. <br /><br />No caso dos paraísos cibernéticos, eles são quase sempre justificados por razões de soberania e desenvolvimento dos países. As ilhas Maurício, por exemplo, um pequeno país da África com a economia ancorada na cana, turismo e tabaco, iniciou há uma década, um trabalho de atração de empresas do mundo digital a partir da oferta de benefícios fiscais agressivos associados a uma legislação bastante liberal. Com isto, o país conseguiu alguns saltos importantes que, ao final, contribuíram para que as Ilhas Mauricio tenham hoje um dos melhores IDHs da África.<br /><br />Para os paraísos cibernéticos, outro argumento favorável está no serviço que prestam à luta pela liberdade de internet por parte de cidadãos que vivem sob ditaduras e usam estes refúgios como locais protegidos para uma militância que, afinal, é vista com muito bons olhos pela comunidade global de índole democrática. <br /><br />Entretanto, verdade seja dita, a existência de paraísos cibernéticos é uma ameaça à segurança global muito mais significativa do que os paraísos financeiros o são para a economia. Primeiro, porque o mundo financeiro já aprendeu a manter seus paraísos em limites tidos como operacionalmente razoáveis. Exemplos recentes, aliás, atestam que o anonimato dos paraísos fiscais vem sendo frequentemente quebrado quando há indícios suficientes de uma lista de crimes hediondos envolvendo as contas offshore.<br /><br />Mas quanto ao paraíso cibernético, a situação prossegue – ao menos aparentemente – sem qualquer sinal de controle. E não são apenas terroristas, gangues do crime organizado, pedófilos ou traficantes que se classificam entre as ameaças ancoradas nesses biombos extra lei.<br /><br />Há casos de milhares de empresas de e-commerce que transferem para tais locais a sua base institucional e assim se livram de inconvenientes, por exemplo, como o código brasileiro do consumidor e ou as normas de proteção mais avançadas dos dados individuais contra o abuso de práticas invasivas de e-marketing e comercialização de cadastros. <br /><br />Os desafios de enfrentar estas contradições do direito ainda estão longe de serem resolvidos, e a prova disto é a lentidão com que o ainda reduzido número de nações adere à Convenção sobre os Crimes Cibernéticos de 2001 (também conhecida como Convenção de Budapeste), embora seja este o mais antigo e mais disseminado marco legal sobre o assunto.<br /><br />A situação nos leva a pensar naquela espécie de limbo a que nos remete a sobreposição por camadas da grande rede global, na qual a internet que usamos no dia a dia é apenas a “surface web”, o que dá ensejo à existência de uma “Internet profunda”, um espaço não rigorosamente indexado e quase fora de controle legal. Tal como acontece com a “deep web”, contra a qual há pouca coisa a se fazer, a existência dos paraísos cibernéticos vai sendo assimilada como um dado da realidade. Uma realidade “natural”, com a qual as pessoas, os Estados Nacionais e as Empresas precisarão conviver utilizando, se precisarem, os instrumentos de legítima defesa que estiverem ao seu alcance. <br /><br />Entre tais instrumentos, muitas vezes, observa-se a aplicação do velho preceito de justiça do talião (“olho por olho dente por dente”). Em tempos recentes, um provedor da Malásia se recusou a revelar a identidade de criminosos que mantinham um site racista e faziam ameaças de morte contra estudantes cotistas de Brasília. Sem apoio das instituições daquele país, a Polícia Federal Brasileira teve acesso a grampos realizados em roteadores internacionais que a levaram à rápida identificação e prisão dos envolvidos. Teria sido esta uma investigação ancorada pelo direito internacional? Bem, o que sabemos a respeito é que a Justiça da Malásia – ou o seu governo central – não emitiu qualquer tipo de protesto.<br /><br />Há casos, porém, em que a situação é mais difícil. A partir de um site em Tokelau, uma ilha da Polinésia, estelionatários brasileiros clonaram o portal do Tribunal de Justiça do RS e enviaram mensagens para milhares de viúvas pensionistas com a cobrança de falsas taxas. Por usar a Internet profunda para controlar suas operações (e, portanto, sem deixar as digitais do seu IP de acesso ao site) tais criminosos permanecem não identificados e a única medida possível é a protetiva, pelo menos até a feitura deste artigo. <br /><br />É possível que os paraísos cibernéticos só tenham seu pleno controle, em bases razoáveis,a partir do acirramento da chamada guerra digital e de um maior empenho das grandes potências em impor uma normativa global que impeça o anonimato de criminosos e dê celeridade às investigações, em se tratando de delitos praticados no ciberespaço.<br /><br />Enquanto isto não acontece, um bom conselho para o cidadão é o cuidado máximo ao estabelecer transações digitais com marcas e remetentes de desconhecidos. Verificar a origem dos sites (inclusive com pesquisa no buscador) é um cuidado essencial. Outra medida de cautela – esta bem mais difícil de seguir – é ler com a máxima atenção os termos de adesão a serviços digitais, sejam eles pagos ou gratuitos. Ao clicar “aceito” ou “avance”, sem a chata leitura desses termos, o usuário está, muitas vezes, autorizando que seus dados cadastrais se tornem públicos, ou passem a integrar, gentilmente, o acervo de informações que este site irá vender ou utilizar mediante, exclusivamente, os marcos legais do país de hospedagem, não raro um paraíso fiscal.<br /><br /><em>(*) Diretor Adjunto de Defesa da ASSESPRO-DF e Presidente da Aker</em></p>